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Richard Serra e a controvérsia do Tilted Arc

EXISTE ARTE PÚBLICA?

Caminhando pela Federal Plaza, em meio ao dinamismo metropolitano de Nova Iorque, o passo é interrompido por uma enorme estrutura de aço. Uma placa de 36,6 metros de comprimento por 3,6 metros de altura atravessava a área. Ao contorná-la, pra chegar a algum dos inúmeros prédios governamentais, podia-se ter sua real dimensão. Com uma leve curvatura e aspecto enferrujado, o objeto em meio à praça era uma obra do escultor Richard Serra, o Tilted Arc (ou Arco Inclinado).

Se hoje você for a Manhattan, não encontrará a escultura. O Tilted Arc foi retirado em 1989, apenas 8 anos após sua instalação. Mas é talvez na sua retirada, e destruição, que a obra ganhe maior valor para ser discutida. 

Tilted Arc, Richard Serra, Federal Plaza, Nova Iorque, EUA.
Tilted Arc, Richard Serra, 1981. Escultura em aço (36,6m X 3,6 m). Federal Plaza, Nova Iorque, EUA.

Houve quem, ao dar de cara com a escultura, pensasse que ela destoava da praça, não entendesse o porquê dela ser arte e se incomodasse com a situação descrita no começo deste texto. Porém, a obra foi feita especialmente para aquele espaço e para aquela situação. Em 1979, o governo pretendia levar a espaços públicos de Nova Iorque uma série de obras de arte, e Serra foi o selecionado para ocupar a Federal Plaza. 

MAS QUEM É RICHARD SERRA?
Richard Serra fotografado por Oliver Mark
Richard Serra fotografado por Oliver Mark

O artista ficou conhecido por suas gigantescas esculturas de aço que questionam o espaço. Grande parte de suas criações são site-specific, ou seja, obras nas quais o espaço de exposição é incorporado à obra.

Uma das características da arte contemporânea é que, em diversas obras, o conceito tem maior valor do que os aspectos formais da peça    para entender melhor, podemos pensar em Comedian de Maurizio Cattelan, que formalmente é apenas uma banana afixada na parede, mas torna-se arte pela ideia que a envolve. Se essa obra foi pensada para um espaço específico, então esse espaço torna-se parte do conceito, pois ele interferirá em como a mensagem é transmitida sendo grande responsável por quem é o público e qual a experiência que ele tem frente a obra. 

É por isso que o Tilted Arc só era o Tilted Arc ali. Quando Serra foi convidado

para construir a escultura para a Federal Plaza, não pensou apenas na dimensão da praça e no que caberia nela, mas que obra geraria uma experiência mais interessante naquele espaço de alta circulação, importância nacional e repleto de edifícios federais. 

"Echo", obra de Richard Serra no IMS-SP.
“Echo”, obra de Richard Serra no IMS-SP.

Porém, nem todos compreenderam a proposta. Ainda em 1979, na aprovação do projeto, houve quem defendesse que a escultura parecia um muro separando as pessoas dos prédios do governo, como conta Rosalyn Deutsche em Tilted Arc and the uses of democracy, livro dedicado à controvérsia da obra. Porém, a Administração de Serviços Gerais dos Estados Unidos aprovou o projeto. 

Em 1979, contrato fechado. 1981, Tilted Arc instalado. Deutsche conta que os trabalhadores e cidadãos que transitavam pelo local se manifestaram contra a obra. A escultura rompia a praça ao meio, fazendo com que a travessia levasse mais tempo e impedindo a utilização máxima do espaço. O “muro” tirava visibilidade e isso era um problema de segurança. Além disso, parte da população não entendia a peça de Serra, que passava a ser vista como “elitista”, e não como uma obra de arte pública como propunha o governo, explica Antonio Duran em sua tese.

 

"A matéria do tempo", escultura de Richard Serra, no Guggenheim Bilbao.
“A matéria do tempo”, escultura de Richard Serra, no Guggenheim Bilbao.
PARA ALÉM DAS FRONTEIRAS DA ARTE

Foi por esses caminhos que se travaram os debates sobre o Tilted Arc. O governo ponderava a realocação da escultura, mas Serra se opôs. Se a obra era site-specific, era só ali, com as situações geradas por aquela territorialidade, que a obra existia. Movê-la era alterar seu conceito, era destruí-la. 

Com isso, o assunto foi levado à corte, e a discussão extrapolou a esfera da arte. O governo defendia que a realocação da escultura poderia restituir à Federal Plaza sua harmonia e utilidade pública. Afirmava que a retirada da obra era vontade do povo. O assunto, na corte e na imprensa, gerou uma discussão sobre a própria noção de democracia e o significado de “uso público”. 

 

O uso público seria apenas para bancos e instrumentos utilitários? A obra tinha um uso estético, ele não é público? Eram esses os argumentos dos defensores do Tilted Arc. Ao mesmo tempo, ao não ser compreendida por todos, a arte ainda é pública? Ao gerar conflitos e fazer com que a população queira sua retirada, não perde esse aspecto? Questionava o outro lado. 

A obra de Serra realmente não se propunha a harmonizar ou adornar o espaço, pois como explica o próprio escultor em entrevista ao jornal O Globo, “o que artistas fazem é estabelecer um paradigma para ver o mundo de uma forma diferente”. Ela propunha uma nova experiência a quem circula pela Federal Plaza e gerava conflito – questionando inclusive se havia uso público ali a princípio, afirma Duran. O governo defendia que a retirada da obra era democrática, mas o conflito, gerado pela obra, não é antidemocrático. O conflito talvez seja, pelo contrário, um lado da democracia (que é um poder de um povo não homogêneo e que, geralmente, não vive em consenso). 

Federal Plaza em Nova Iorque - Tilted Arc
A Federal Plaza, em Nova Iorque, após a reforma.

Na audição, decidiu-se pela retirada da obra. Tilted Arc foi destruída em 1989 – a pedido de Serra, nunca foi realocada. Em seu lugar foram instalados bancos e jardins, para que a população pudesse utilizar o espaço de modo pragmático.