EXISTE ARTE PÚBLICA?
Caminhando pela Federal Plaza, em meio ao dinamismo metropolitano de Nova Iorque, o passo é interrompido por uma enorme estrutura de aço. Uma placa de 36,6 metros de comprimento por 3,6 metros de altura atravessava a área. Ao contorná-la, pra chegar a algum dos inúmeros prédios governamentais, podia-se ter sua real dimensão. Com uma leve curvatura e aspecto enferrujado, o objeto em meio à praça era uma obra do escultor Richard Serra, o Tilted Arc (ou Arco Inclinado).
Se hoje você for a Manhattan, não encontrará a escultura. O Tilted Arc foi retirado em 1989, apenas 8 anos após sua instalação. Mas é talvez na sua retirada, e destruição, que a obra ganhe maior valor para ser discutida.
Houve quem, ao dar de cara com a escultura, pensasse que ela destoava da praça, não entendesse o porquê dela ser arte e se incomodasse com a situação descrita no começo deste texto. Porém, a obra foi feita especialmente para aquele espaço e para aquela situação. Em 1979, o governo pretendia levar a espaços públicos de Nova Iorque uma série de obras de arte, e Serra foi o selecionado para ocupar a Federal Plaza.
O artista ficou conhecido por suas gigantescas esculturas de aço que questionam o espaço. Grande parte de suas criações são site-specific, ou seja, obras nas quais o espaço de exposição é incorporado à obra.
Uma das características da arte contemporânea é que, em diversas obras, o conceito tem maior valor do que os aspectos formais da peça – para entender melhor, podemos pensar em Comedian de Maurizio Cattelan, que formalmente é apenas uma banana afixada na parede, mas torna-se arte pela ideia que a envolve. Se essa obra foi pensada para um espaço específico, então esse espaço torna-se parte do conceito, pois ele interferirá em como a mensagem é transmitida – sendo grande responsável por quem é o público e qual a experiência que ele tem frente a obra.
É por isso que o Tilted Arc só era o Tilted Arc ali. Quando Serra foi convidado
para construir a escultura para a Federal Plaza, não pensou apenas na dimensão da praça e no que caberia nela, mas que obra geraria uma experiência mais interessante naquele espaço – de alta circulação, importância nacional e repleto de edifícios federais.
Porém, nem todos compreenderam a proposta. Ainda em 1979, na aprovação do projeto, houve quem defendesse que a escultura parecia um muro separando as pessoas dos prédios do governo, como conta Rosalyn Deutsche em Tilted Arc and the uses of democracy, livro dedicado à controvérsia da obra. Porém, a Administração de Serviços Gerais dos Estados Unidos aprovou o projeto.
Em 1979, contrato fechado. 1981, Tilted Arc instalado. Deutsche conta que os trabalhadores e cidadãos que transitavam pelo local se manifestaram contra a obra. A escultura rompia a praça ao meio, fazendo com que a travessia levasse mais tempo e impedindo a utilização máxima do espaço. O “muro” tirava visibilidade e isso era um problema de segurança. Além disso, parte da população não entendia a peça de Serra, que passava a ser vista como “elitista”, e não como uma obra de arte pública como propunha o governo, explica Antonio Duran em sua tese.
Foi por esses caminhos que se travaram os debates sobre o Tilted Arc. O governo ponderava a realocação da escultura, mas Serra se opôs. Se a obra era site-specific, era só ali, com as situações geradas por aquela territorialidade, que a obra existia. Movê-la era alterar seu conceito, era destruí-la.
Com isso, o assunto foi levado à corte, e a discussão extrapolou a esfera da arte. O governo defendia que a realocação da escultura poderia restituir à Federal Plaza sua harmonia e utilidade pública. Afirmava que a retirada da obra era vontade do povo. O assunto, na corte e na imprensa, gerou uma discussão sobre a própria noção de democracia e o significado de “uso público”.
O uso público seria apenas para bancos e instrumentos utilitários? A obra tinha um uso estético, ele não é público? Eram esses os argumentos dos defensores do Tilted Arc. Ao mesmo tempo, ao não ser compreendida por todos, a arte ainda é pública? Ao gerar conflitos e fazer com que a população queira sua retirada, não perde esse aspecto? Questionava o outro lado.
A obra de Serra realmente não se propunha a harmonizar ou adornar o espaço, pois como explica o próprio escultor em entrevista ao jornal O Globo, “o que artistas fazem é estabelecer um paradigma para ver o mundo de uma forma diferente”. Ela propunha uma nova experiência a quem circula pela Federal Plaza e gerava conflito – questionando inclusive se havia uso público ali a princípio, afirma Duran. O governo defendia que a retirada da obra era democrática, mas o conflito, gerado pela obra, não é antidemocrático. O conflito talvez seja, pelo contrário, um lado da democracia (que é um poder de um povo não homogêneo e que, geralmente, não vive em consenso).
Na audição, decidiu-se pela retirada da obra. Tilted Arc foi destruída em 1989 – a pedido de Serra, nunca foi realocada. Em seu lugar foram instalados bancos e jardins, para que a população pudesse utilizar o espaço de modo pragmático.