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Guimarães Rosa: o sertão que virou mundo

Grande Sertão: Veredas
Capa de “Grande Sertão: Veredas”, edição da década de 1960, da editora José Olympio.

Obra magna da literatura brasileira, Grande Sertão: Veredas foi publicado em 1956, durante o governo de Juscelino Kubitschek, momento no qual o Brasil vivia grande pujança cultural. Marcado pela oralidade, regionalismo e criação de neologismos, o livro conta  a história de Riobaldo, jagunço que reflete sobre os acontecimentos de sua vida e descreve o cenário do sertão mineiro, entrando em contato profundo com sua espiritualidade ao fazer um pacto com o demônio. Apaixonado por Diadorim, vive com ele uma relação ambígua entre amizade e amor, o que traz à tona o tema da homossexualidade masculina. Publicado pela editora José Olympio, a escrita emblemática de Guimarães Rosa foi complementada com ilustrações de Poty Lazzarotto, artista gráfico que busca em seus desenhos o efeito da xilogravura.

Após ganhar fama rapidamente no Brasil, a obra atribuiu ao sertão mineiro uma dimensão universal e ganhou traduções em outros idiomas como inglês e alemão, além de versões para o cinema e a TV. Mas, publicar em outras línguas uma obra com tantas especificidades de linguagem não era tarefa fácil, por isso, ele também participou ativamente do processo dessas publicações, estabelecendo diálogos tão ricos, por meio de cartas com os tradutores, que chegaram a ser publicados.

Ilustração de Poty Lazzarotto (Enciclopédia Itaú Cultural)
AS FACETAS DE GUIMARÃES ROSA

 

Nascido em 1908 em Cordisburgo (MG), Guimarães Rosa se formou médico em Belo Horizonte e passou a trabalhar em pequenas cidades em torno da capital mineira. Apesar desses aspectos de sua biografia serem socialmente muito valorizados, o escritor considerava sua vida tediosa. Para se libertar e entrar em contato com outras realidades, estudou línguas e acabou se tornando poliglota, fluente em oito idiomas. O estudo dessa área se relaciona diretamente com seu modo de escrever marcado pela experimentação linguística. 

O autor faz parte do movimento modernista ao lado de grandes nomes como Clarice Lispector e, em suas obras, podem ser analisados dois aspectos complementares e não excludentes: de um lado, o trabalho com a linguagem e, do outro, a temática do homem do grande sertão mineiro. O universo rústico, cortante e agressivo é retratado de maneira delicada por meio da criação de uma quase nova língua capaz de dizer aquilo que, para ele,  não seria possível de outra maneira.

Monumento em homenagem a Guimarães Rosa em Cordisburgo (Kamilla Ferreira/Agência PT )

Seu personagem central é o jagunço, homem do interior marcado pela religiosidade local, convivência com animais e natureza como um todo. A valorização do viés espiritual vai além do âmbito do cristianismo, alcançando o  transcendente, o caráter inexplicável, a relação com o divino e o encontro com a morte. Sagarana, seu livro de estreia aos 38 anos, resgata a oralidade local, acrescentando à sua estilização nomes de pássaros, plantas e onomatopeias que reproduzem sons da natureza para contar histórias como se fossem lendas, exemplos de oscilação entre o real e o irreal.

Outra faceta de Guimarães Rosa é a do diplomata. Após ocupar alguns cargos públicos como Oficial Médico do 9º Batalhão de Infantaria, foi aprovado no concurso do Itamaraty e exerceu a função de cônsul-adjunto do Brasil em Hamburgo, Alemanha. Foi nesse contexto que conheceu quem viria a ser sua segunda esposa, Aracy de Carvalho, que trabalhava no Ministério das Relações Exteriores e viabilizava vistos para judeus refugiados do nazismo. A experiência vivida durante a Segunda Guerra Mundial foi transposta, mais tarde, para o ambiente do sertão e retratada no comportamento violento de alguns de seus personagens.

Guimarães Rosa e Aracy de Carvalho (Wikimedia Commons)

Reconhecido pela qualidade de sua literatura, o escritor foi nomeado a ocupar a cadeira número 2 na Academia Brasileira de Letras como imortal. Por conta de sua relação com a espiritualidade, Rosa acreditava que morreria caso tomasse posse e adiou a cerimônia por quatro anos e, três dias depois de seu emocionante discurso, faleceu de infarto fulminante.

Apesar de ter deixado Cordisburgo aos nove anos de idade, o repertório disponibilizado pelo escritor foi capaz de mover grandes ações em sua cidade natal. Os Contadores de Estórias Miguilim, por exemplo, formam um projeto educativo criado em 1998, composto por 30 jovens de até 18 anos que recebem treinamento e formação em técnicas de narração de histórias e conteúdos sobre a vida e obra de Guimarães Rosa. A primeira turma egressa do projeto deu continuidade às narrações, o que gerou o grupo Caminhos do Sertão, em atividade até os dias de hoje. 

Grupo Caminhos do Sertão (Arquivo Paleta Cultural)

Cordisburgo (cidade do coração) é um lugar onde cerca de oito mil habitantes têm suas vidas ligadas ao universo roseano, o que lhes dá a chance de se conectar com a educação por intermédio do legado do grande escritor brasileiro. Em uma de suas famosas frases, Guimarães escreveu: “O senhor… Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam”. É o que acontece com a obra de Guimarães Rosa que, apesar de terminada, permanece viva e sendo celebrada e reinterpretada.